domingo, 14 de janeiro de 2007

EU (continuação)

Em Setembro de 94, numa semana a minha vida mudou para sempre, saíram as listas de colocados nas faculdades e eu fazia parte delas. Fiz a mala e saí do Alentejo com o intuito de só voltar de visita.
Nos fins de semana que ia a casa, era habitual, sair à noite com a Alexandra, tornou-se rotina encontrar o Pedro, casualmente ficávamos juntos, resumindo, sempre que me apetecia.
Houve dias em que me lembrei dele em Lisboa, mas confesso que não era frequente. Tinha novos amigos, novas experiências, novos interesses, tinha tanto com que me preocupar que não podia perder muito tempo a recordar o Pedro, afinal de contas, nele nada me preocupava, ele estaria sempre à minha disposição, alimentando-me o egoísmo e satisfazendo os meus caprichos!
Não sabia na altura, mas era uma miudinha mimada, egoísta, mesquinha e cruel. Não o fazia de forma propositada, mas era um facto! Juro-vos que queria contar a história de outra forma, com uma Marta perfeita, a quem ninguém apontasse o dedo, mas se o fizesse... essa Marta não seria eu e a história não era a minha...
O Pedro, vou tentar descreve-lo com imparcialidade, vejamos, era a criatura mais doce que algum dia conheci, era amigo, bom coração, mas infelizmente era realmente fraco e submisso, naquela altura perdeu-me apenas porque não me deu luta, porque eu não queria um animal de estimação! – apercebi-me neste momento que continuo cruel, animal de estimação é esticar a corda, mas é o que penso e se aprendi alguma coisa da vida foi a dizer o que penso, o que sinto, não me voltarei a calar.
No fim do segundo ano de faculdade, recebi a visita de um antigo colega do secundário, o Filipe, que em tempos tivera uma paixoneta por mim. Jantámos e a páginas tantas, contou-me que estava com problemas com drogas, consumia, traficava e até já tinha sido preso. Não recordo com precisão o que lhe disse, mas sei que mostrei a minha desaprovação, fiquei realmente incomodada com a confissão. Só não podia imaginar que ele tinha ainda mais a dizer-me, até que a meio da sobremesa disparou:
«Ainda te dás com o Pedro? Ele era um dos meus melhores clientes, comprava-me cavalo»
E foi assim que as minhas verdades se transformaram em mentiras, que o meu mundo ruiu, que fiquei sem chão, sem ar...
Na minha cabeça martelavam sempre as mesmas palavras:
Comprava-me cavalo... não... comprava-me cavalo... nem pensar... comprava-me cavalo... eu teria percebido... comprava-me cavalo... é mentira... comprava-me cavalo... e se for verdade?
Foi uma das semanas mais compridas da minha vida, o fim de semana nunca mais chegava e o medo aumentava de forma exponencial, o que faria da minha vida se fosse verdade? E pela primeira vez tive medo de o perder! Devia falar com ele ou enfiar a cabeça na areia?
No fim da semana já não aguentava a dúvida e procurei-o. Falei-lhe da conversa com o Filipe e esperei pela versão dele, era um fim de tarde de Maio, sentámo-nos num banco do jardim público e ficámos isolados do mundo.
O Pedro negou, negou, negou e não me convenceu. Foi uma conversa difícil, senti-me traída, ferida e quis feri-lo, provocá-lo, magoá-lo até que confessa-se.
«Podes contar-me a verdade, eu conto-te também umas coisas sobre mim que tu não sabes.» Dado que o silêncio foi a minha resposta continuei «Eu tinha um namorado lá! Até à bem pouco tempo» Falei de forma a que ele acreditasse que tinha estado com os dois ao mesmo tempo, o que não era verdade.
O seu olhar ficou gelado.
«Queres mesmo saber? É verdade que eu experimentei cavalo, mas do que eu gosto mesmo é de branquinha... E a culpa é tua! É mais fácil pra mim, depois de tu me deixares em casa depois de estarmos juntos não estar muito consciente, é mais fácil pra mim no dia a seguir quando nos cruzamos como dois estranhos não estar muito consciente, é mais fácil pra mim durante as semanas que não sei nada de ti e que tu estás sabe-se lá com quem eu não estar muito consciente!»
Falou com uma raiva que eu não supunha existir nele.
A partir desta conversa a miscelânea de sentimentos não parou. Comecei por achar que enlouquecera, dei-lhe razão, considerei que era um fraco, compreendi, lamentei, culpei-o, culpei-me e nunca me perdoei!
Foi nesse ponto que se deu a viragem, passei a estar sempre disponível, a procurá-lo, a preocupar-me, a correr atrás dele, a viver para os seus caprichos.
Via-o tanto e tocava-lhe tão pouco... ia ter com ele às escondidas pela porta das traseiras do café para o meu pai não saber, para que os vizinhos não falassem, para não confirmar a ninguém o que todos já sabiam. Assisti a ressacas, vi-o enlouquecido a dizer que ia fugir, que tinha uma vida estúpida... Outros dias, poucos, ele era só o puto de antigamente, meigo, carente, amigo...
Fiquei algumas noites sentada no meu carro à espera dele, numa rua qualquer onde tivéssemos combinado, a ver as horas passarem lentas... esperava até perceber que era inútil, ele não viria! Nessas noites no escuro do meu quarto, ouvia as palavras dele. «Gosto de snifar coca e daí? Não sou agarrado» Engolia as lágrimas, determinada, a culpa de tudo aquilo era minha e ele não era agarrado... tinha que o ajudar.
Se eu não fosse uma criança de vinte anos, julgo que o teria sabido ajudar, mas era, e não o soube fazer. Mas seria a culpa minha? Fora cruel sim, magoara-o, mas seria a culpa minha?
No dia seguinte, quando o procurava decidida a lutar por ele ouvia-o «O meu pai emprestou-me o carro e fui ao casal», e nesse momento ficava perdida, sem saber o que dizer, aquela merda tinha sempre prioridade, ele preferia fazer 200Km para comprar uns gramas a estar comigo... eu sabia... estava ali por opção, ninguém me estava a mentir!
Foi um verão longo, cheio de semanas de mil dias, cada um preenchido por demasiadas horas, os poucos momentos de paz foram sonhados nas madrugadas passadas na velha rede, debaixo de um céu cheio de estrelas...
Com o regresso às aulas, a sensação de impotência aumentou, estava longe e perdida, tentava tudo e na verdade não fazia nada. O Pedro ia-me administrando pequenas doses de veneno, a sua indiferença comigo e com o mundo tiravam-me a lucidez, acreditei alguns dias que tudo aquilo não era verdade, que um dia iria perceber que tudo era apenas um mal entendido. Muitas vezes pensei que o problema estava só na minha cabeça...
No fim desse ano estava cansada, desorientada, deprimida, sozinha. Não tinha a mais pálida ideia do que fazer com a minha vida. Estava suficientemente carente para conhecer alguém e assim surgiu o Zé. Sentava-se comigo em silêncio, fazia-me rir, apoiava-me. Ficou comigo... eu... fiquei sem nada... sem ninguém!
Quando a nossa relação começou senti-me bem, foi a minha primeira relação, agradava-me a ideia de a assumir, adorava a ilusão de que iria esquecer o Pedro. Não amava o Zé, acho mesmo que nem sequer me apaixonei, mas ele era o escape perfeito, se ficasse com ele talvez aprendesse a amá-lo, iria acabar por esquecer o Pedro e com certeza seria feliz... não podia estar mais enganada!
A distância a que estava geograficamente do Pedro permitiu-me omitir o aparecimento do Zé e a proximidade que ainda sentia, impediu-me de dispensar as migalhas que ele de vez em quando me mandava. A vida dupla durou cerca de dois meses, aqui era a namorada do Zé e lá era a miúda que saía com o Pedro. Como devem imaginar não me orgulho particularmente, mas também não posso dizer com sinceridade que sofri muito com a culpa, deveria?
Claro que sim, que pergunta idiota, deveria se não fosse tão amoral, mas a verdade é que era, ou sou...
O Zé sabia que eu não o amava e o Pedro... tentei contar-lhe, mas recusava-me a perder o que não tinha...
Tive os meus momentos de luta interna claro, tive algumas crises de consciência sim, mas a imaturidade tratou de as resolver com grande eficiência.
Num dos fins de semana no Alentejo, num domingo à noite o Pedro ligou-me, queria vir ter comigo durante a semana... as duas realidades cruzaram-se e a farsa terminou.
Pedi-lhe que não viesse, disse-lhe que depois falávamos, ele insistiu e eu contei-lhe a verdade, sei que podia ter inventado qualquer coisa, sei que podia ter mentido, sei que não lho devia ter dito pelo telefone, mas naquele momento a única coisa que soube foi confessar-me. Tentei explicar-lhe o que eu própria tinha dificuldade em entender, disse-lhe que não aguentava mais esperar que ele não estivesse de ressaca, que tivesse tempo para mim... pedi-lhe que entendesse que não podia mais vê-lo daquela forma, ao que me respondeu: «Eu preferia ver-te agarrada do que com outro!»
Não queria acreditar no que ouvira, como é que ele o podia dizer, ou pior, sentir... Eu queria vê-lo de qualquer forma que não aquela.
Acordei cedo na manhã seguinte e estava quase a sair quando o Pedro apareceu na casa dos meus pais. Apesar da situação constrangedora ele teve a delicadeza de desculpar a sua visita inesperada e inoportuna às sete e meia da manhã com uma suposta boleia e embora os meus pais não tenham acreditado por ser demasiado obvio o nosso mal estar, agradeço a todos o inicio de manhã teatral.
Saímos os dois juntos da minha casa em silêncio e parámos na cidade para beber café. Chorámos juntos... Pela primeira vez, olhei-o nos olhos e disse-lhe que gostava dele, um contra-senso, dado que estava com outra pessoa, mas tentei explicar os meus porquês. Atingira o meu limite do suportável, era-me impossível continuar a partilhá-lo com o vicio e disputá-lo com a cocaína parecia-me uma luta perdida!
O Pedro afirmou que me adorava, que podia mudar, que não estava agarrado e que largava quando quisesse.
«Então prova-o, quando estiveres bem voltamos a falar.»
«E até lá? Ficas com o outro gajo?»
«Até lá eu sigo a minha vida.»
«Depois sou eu que não quero, antes mato-o a ele e mato-te a ti.»
Este diálogo envergonha-me profundamente e é este o único comentário que lhe farei.
Conduzi devagar no regresso a Lisboa, não iria às aulas, já não tinha pressa, já não tinha sonhos, já não tinha nada... a não ser tempo... tempo que me permitiria esquecê-lo, que me traria outros sonhos, que me daria outros amores!
(continua)

6 comentários:

GK disse...

Situação complicada... Aposto que a "miúda mimada" que disseste que eras começou a morrer nesta altura... Não?

Bj.

Mina disse...

Estive agora a fazer o uptade. Nada na vida é linear... Vou esperar pela continuação, as desde já te digo que só mesmo sendo muito forte conseguirias suportar isto tudo!
Bjs, boa semana... depois venho cá ver do resto :)

Borboleta disse...

Oi Marta...a vida nem sempre é um mar de rosas..e muito menos linear..creio que és uma mulher de garra ;) e mais cedo ou mais tarde a vida vai te devolver todos os sorrisos que um dia te roubou...um abraço muito grande para uma grande mulher

Esteril disse...

Do 1º paragrafo, ocorre-me só dizer isto (antes de ler o resto), lá continuavas a tratar o mocito com desprezo, afinal não querias que ele te prendesse, e como normalmente o feitiço se vira contra o feiticeiro, acabaste tu presa a ele estes anos todos... Espero que no final tenhas aprendido a lição...
Vou continuar a ler..
bjs

Esteril disse...

Após ler o post até ao fim, realmente essa historia que tinha tudo para dar num daqueles amores que todos ambicionam, correu mal, por questões de personalidade e insegurança. A partir daí foi um dominó de sentimentos e sofrimentos que vocês se impuseram uma ao outro. Tentaste nesse momento conquistá-lo, mas já era tarde...
Não tens culpa de ele ter sido fraco por seguir o caminho da droga, só porque não lhe correspondias o amor que ele tinha por ti, afinal ele nem sabia que gostavas dele. Isso não invalida alguma culpa tua por teres sido fria com ele, mas também não te culpa do caminho que ele seguiu.
Mas no final, quando ele disse que mudaria por ti, e tu já tinhas confessado que gostavas dele, mas mais foste egoísta, dizendo-lhe que ele mudasse enquanto ele disse aquelas barbaridades da boca para fora, mas compreensível, pelos sentimentos que ele deve ter tido nesse momento. Afinal sempre lutou por ti, e não era um submisso, mas apenas alguém que não resistia a tentar dar tudo à pessoa amada que eras tu. Com tantos anos de "turtura" de ti para ele, de ti para ti, nesse momento tiveste mais uma vez na mão redimires-te de tanta indiferença e mais uma vezes o magoaste...

p.s. não é uma critica, é apenas um comentario imparcial
bjs

Anónimo disse...

hummm...a vida tem contornos estranhos..um beijinho
cádis/ASV