quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

EU

Este blog foi criado com um propósito, que embora discutível é algo que me propus fazer. Hoje, antes que me desvie do caminho traçado, começo a confessar uma história, a minha, que não é perfeita que nem sempre é bonita, mas que é real, está escrita quase há um ano, o tempo que demorei a decidir-me a mostrá-la.
Nos próximos dias será dela que se falará por aqui. Aos que ficarem, um obrigada pela paciência, aos que partirem, um obrigada por terem vindo!
Beijos, Marta.


O sol entrava pela janela do quarto, desenhando rectângulos amarelos na parede branca, o despertador tocava insistentemente, procurei-o a tacto e desliguei-o novamente, para adiar o inevitável por mais cinco preciosos minutos. Repeti o ritual uma última vez e levantei-me finalmente.
A corrida matinal estava iniciada, lavei os dentes enquanto a água já corria na banheira, tomei um duche rápido e saí a correr. Os dois lances de escada pareceram-me maiores, como se os degraus se multiplicassem todas as manhãs só para me atrasar. Já na rua percebi que estava um dia bonito, mas não tinha tempo para esse tipo de considerações, o objectivo era a batalha de 5 km que me separavam do escritório.
Olhei novamente o relógio que descontrolado avançava furiosamente, enquanto o transito tinha a velocidade estonteante de um caracol. Vi as horas, praguejei, vi as horas, prometi a mim mesma que começaria a acordar mais cedo, vi as horas, vi as horas, vi as horas...
Enquanto engolia o café, revia a imagem dele no meu sonho, conservava o rosto de menino, os traços que os meus dedos percorreram, mas o olhar e a atitude controlada era um mistério, era um homem na pele do miúdo que eu amei. Afastei os pensamentos, paguei o café e percorri os poucos metros que me separavam do escritório em passos apressados, passavam doze minutos das oito horas quando me sentei atrás da secretária.
«Podia ter sido bem pior...» murmurei com um sorriso de vitória, o escritório estava deserto.
Comecei por organizar o dia, verificar compromissos, abrir o correio... sem que eu conseguisse evitar a mesma imagem assaltava-me o pensamento, aquele ligeiro sorriso a bailar-lhe nos lábios... ao longo do dia as recordações foram surgindo como fantasmas... roubando-me a paz...
Os três anos anteriores já tinham sido assim, os sonhos frequentes, as memórias que não sabia ao certo se existiam ou se faziam parte do meu delírio, a roçar a loucura!
Entrei em casa pouco depois das seis, estava finalmente livre para me sentir miserável, para me lamentar e ter pena de mim...
No escritório, uma divisão pequena atulhada de tralha, numa das prateleiras arqueadas pelo peso, estavam três cadernos que retirei uma vez mais do lugar, as folhas soltas que lhes fui acrescentando ao longo dos anos saíam irregularmente pelas laterais, espelhando a minha desorganização.
Larguei-os sobre o sofá da sala, e permaneci em pé a olhá-los, da capa ligeiramente erguida de um deles podia ver a igreja em que entrei uma única vez há quase doze anos atrás. Observei a tira visível do lado direito do altar, a fotografia fora tirada numa tarde de Junho, uma tarde quente em que nós estávamos felizes junto ao altar, uma tarde tão longínqua que muitas vezes pergunto-me se existiu, se foi como a recordo ou se a minha memória retorcida criou lembranças fantasmas. Num impulso agarrei-a precisava de cada emoção que ela me dava sempre que em dias como aquele lhe tocava, como um viciado em busca de uma dose, não podia adiar mais...
Acendi um cigarro e comecei a folhear as velhas lembranças.
Da fotografia olhava-me uma criança assustada, uma menina fantasiada de mulher no seu vestido preto, sustendo a respiração, enquanto o menino lhe prende a fita de finalista ao peito. Ele está de perfil, concentrado na sua tarefa, mordendo o lábio com um sorriso! Estava tão lindo... era tão lindo... é tão lindo!
Com os olhos fechados e a mão direita aberta sobre ela, consumi as sensações do passado que me entravam por todos os poros da pele, fantasiando que tinha ainda dezoito anos e que o mundo ainda era cor de rosa.
Dei mais um trago no cigarro e continuei a viagem.
Entre as folhas de papel estava o envelope amarelecido pelo tempo, de dentro dele surgiu o postal, o ursinho continua a sorrir enquanto desfolha o malmequer, sorri porque ignora que no fim ficará uma única pétala, o mal me quer. Desdobrei-o, a minha própria letra, trémula, dizia «Um beijinho, Marta», por baixo da letra impressa “ Eu aqui... tu aí... um de nós está no sitio errado...!”. Pela cara rolou a mesma lágrima de sempre, a que corre e eu engulo para não nos separarmos.
Tinha escolhido o postal para o aniversário dele, o vigésimo primeiro, mas fui incapaz de lho entregar e decidi que o enviaria pelo correio, não o estaria a olhar e expor-me seria mais fácil... mas os dias passaram, depois as semanas, os meses, os anos... e nunca o enviei, conservei-o comigo, juntamente com a dúvida do que teria acontecido se um dia ele tivesse chegado ao seu destino!
A insegurança daqueles tempos apoderou-se de mim, como havia acontecido nos outros dias de ressaca que vivera. A miscelânea de sentimentos, o medo, a dor, a saudade, esmagava-me o corpo, latejava nas veias envenenando cada segundo.
«Estou» Respondi ao aparelho que me devolvia a realidade.
«Olá! Boa noite!»
«Olá mãe! Tudo bem com vocês?»
«Vamos andando com as nossas coisas, mas nada de especial e contigo? Correu bem o teu dia?»
«Sim» Menti.
«Já sabes se vens no fim de semana?»
«Ainda não, estamos a terminar a obra de Santarém, vamos ter lá o pessoal a trabalhar e em principio vou ter que lá ir. Eu ligo quando souber se trabalho.»
«Está bem... já cá não vens à três semanas...»
Não sei se a minha mãe algum dia me entendeu, aliás, não sei se alguém algum dia me entendeu verdadeiramente, e eu incluo-me neste alguém. Muitas vezes deve pensar que enlouqueci, não aprova o meu gosto pela solidão, não entende a minha aversão a ser mãe, enfim, não sou com certeza a mulher que ela sonhou enquanto me observava a brincar em criança. Não me estou a queixar, ela é a melhor mãe que eu poderia ter, sempre me deu amor, atenção, repreende-me quando necessário, e acima de tudo disse-me nos momentos mais difíceis que sou sua filha e que ainda que nem sempre aprove as minhas escolhas, nunca deixará de estar do meu lado. Temos uma boa relação, confiamos uma na outra, o nosso senão é a distância, saí de casa com dezoito anos quando entrei na faculdade e só vou ao Alentejo de fim de semana ou durante as férias. Sei que os meus país sofrem com a minha ausência. O meu pai é mais reservado, não se expressa com a naturalidade da minha mãe, sinto-lhe por vezes a voz tremida na despedida, mas simplesmente fingimos que não aconteceu.
Saí de lá à procura de mim, dos meus sonhos. Na província teria sempre uma vida demasiado pequena para o que eu julgava querer, aborreciam-me os campos, tinha-me fartado de comer terra durante a infância, cansava-me ter que sorrir aos vizinhos todos os dias, irritava-me o facto de se acharem todos conhecedores da vida alheia, queria liberdade e independência... cumpri muitos objectivos. Não preciso de sorrir aos vizinhos nos dias de neura, murmuro um bom dia e já me consideram educada, com certeza tecem teorias sobre a minha existência, mas nenhuma me belisca porque ignoro o seu conteúdo. Sou independente, tenho uma vida profissional interessante, vivo na ilusão de que sou competente... mas não me encontrei, porque permaneço lá pelos campos floridos na primavera, cheirando a terra molhada do inverno, adormecida na paz das planícies, sorrindo com aquela gente simples com quem me identifico... e a liberdade? Que raio de liberdade era essa que dizia ter aos amigos, aos familiares, que raio de liberdade era essa que eu fingia ter enquanto me obrigava a viver na minha própria ditadura, a nossa pior mentira é aquela que repetimos todas as noites antes dormir na solidão do nosso quarto...

(continua)

7 comentários:

Esteril disse...

Bom que testamento, é o que eu digo o Martini deve ser dos Bons :)))
Estou a brincar, no final do texto dizes algo muito verdadeiro, que nos iludimos nas nossas mentiras. Passamos uma imagem que os outros nos dizem ter de nós, mas no fundo, nos sensíveis, frágeis e conflituosos interiormente, sofremos as nossas desventuras na solidão... infelizmente por mim aprendi que só temos a perder por ser assim, tão pensadores... Ainda bem, que foi tudo no passado. Estás mais forte, isso é muito bom.
bjs

GK disse...

Admiro a tua coragem para te revelares objectivamente. Lá chegarei.

Bj.

Borboleta disse...

Bom dia..li cada palavra tua...a vida nem sempre é como o desejamos..quanto aos amores...ninguém é feliz com os outros se não for feliz sozinho...e tenho a certeza que ja encontraste a paz...um dia destes bate à porta quem tu esperas...jinhos e fico à espera da continuação....

Borboleta disse...

Creio que deves ser uma grande mulher..uma mulher cheia de força e muito corajosa...gosto muito de te ler...;)

Mina disse...

A vida modifica-nos e ensina-nos muita coisa. A tua história tem contornos semelhantes com a minha... até ver, apenas contornos. Aguardo pelo resto.
Bom fim de semana, cheio de força e coragem :)
Bjs.

Xanusca disse...

:) gosto muito de aqui vir e rever-me nas tuas palavras. Nunca me tinha acontecido isto de forma tão intensa.

Marta disse...

Obrigada a todos, sei que é preciso paciência para estes meus delírios tão longos e velhos, mas preciso lançá-los ao mundo para me poder livrar deles.
Estou quase lá... :)
Bom fds
BEIJOS!!!